terça-feira, 6 de maio de 2008

Sobre coser e cozer

Em casa temos uma divisão de tarefas. Eu sempre cuidei da comida, e a minha mulher, das roupas. Manhã dessas de domingo, quando as coisas sem importância vêm nos dar a mão, me deparei com um conto do Graciliano Ramos ("Os Astrônomos"). No meio da leitura, sou solapado com uma frase: “Perto da mesa havia uma esteira, onde as mulheres se agachavam, cortavam panos e cosiam.”
Minha primeira sensação foi de estranhamento da relação entre os panos e o coser, leitor desatento, confundi coser com cozer. Pensei que as mulheres cortavam panos enquanto preparavam a refeição. Posso ser um leitor desatento, mas sou um fotógrafo atento. E a relação me saltou aos olhos. O que poderia passar (passar mal) despercebido acabou se revelando em uma imagem das mais belas, daquelas que se constroem antes da fotografia.
Coser é o ato de alinhavar tecidos, juntar trapos diferentes para confeccionar algo útil como uma roupa, remendar algo ou fazer uma toalha para a mesa. Quando juntamos tecidos diferentes, temos algo em mente, um objeto ou um objetivo. Lembro-me da confecção de uma colcha de patchwork –nome bonito para a antiga colcha de retalhos– que acompanhei de perto. A escolha dos tecidos, os detalhes construídos um a um, os tecidos que iriam constituir o mosaico, a barra, o enchimento e a riqueza que é o acabamento. É no acabamento que se diferenciam mestres e aprendizes. É engraçado como todo o processo de construção acaba revelando muito do que somos.
Uma das coisas que a idade traz é não permitir-se abandonar as coincidências dessa vida. Dialogar com Graciliano em plena manhã de domingo não é algo que se possa fazer impunemente. Lembrei do cuidado em reparar as roupas já gastas pelo uso e pelo tempo, trabalho que demanda muita dedicação e entrega de quem o pratica. É muito mais trabalhoso tampar os furos de uma meia do que comprar uma nova. Penso que, às vezes, a falta de dinheiro acaba estreitando os laços que a necessidade não deixa desatar. É tão mais fácil comprar uma meia nova. Quando criança, tinha vergonha das roupas costuradas. Hoje sei que elas eram a maior expressão de carinho.
Cozer é o processo pelo qual se prepara uma refeição. Algo tão necessário como uma roupa ou a toalha que recobre a mesa que serve o almoço. Da mesma forma que podemos nos vestir com trapos, podemos comer alimentos que nutrem, mas não saciam. Uma refeição começa com a escolha do que comer. Eu diria que essa é a escolha mais importante, e dela decorrem todas as outras. Em uma época em que a velocidade determina tudo, ganhar tempo é fundamental, veja-se o aumento das redes de fast food nos últimos anos. Uma boa refeição tem um começo muito mais digno. Começa pela escolha dos ingredientes, os tomates vermelhos e carnudos para o molho, a carne cortada da maneira correta, a escolha das panelas, dos azeites e dos temperos. É aqui que se diferenciam mestres de aprendizes. Cozinhar é um ato de dedicação. É uma atividade de entrega, na qual cada ingrediente doa seu sabor para se misturar com os demais. Jamais consegui demonstrar meu amor pelas pessoas em uma loja que vende comida como quem vende peças automotivas. É engraçado como o amor é uma coisa que se cose, se costura, se mede pelo avesso, onde se estreitam os pontos. De retalhos se constroem novas coisas. É no amor também que duas pessoas misturam e doam a melhor parte de suas vidas para construir coisas novas. É um cozimento lento, em fogo brando, que permite que os saberes e sabores fluam, escorram e criem combinações inusitadas.
Tanto coser como cozer para o outro são demonstrações de um amor incondicional, que não busca o agrado, pois a roupa remendada pode não ser a mais bonita do mundo e o jantar pode não ser a melhor refeição, mas com certeza estreitam laços, unem, fundem sentimentos.
Hoje pedi a meu amor que me deixasse consertar suas meias enquanto ela preparava o nosso café da manhã. Em casa temos uma divisão de tarefas, mas construímos ela juntos.

Texto escrito por Edward Zvingila

Um comentário:

Erika disse...

Sensibilidade para ver as coisas do mundo... Obrigada por nutrir minha alma logo pela manhã com este lindo texto. Um abraço para vc e para a Cleide.